Emir Sader
O Brasil se vê crescentemente convocado a elaborar um pacto pela infância e articular uma série de políticas com objetivos e motivações múltiplas, desde as que se referem a índices educacionais, sanitários e de moradia, até os mais substantivos, neste caso, referentes à ampliação da cidadania e reconhecendo as crianças como sujeitos de direito. Na articulação entre essas duas dimensões abre-se a possibilidade de efetivarmos políticas que reconheçam vozes e necessidades das crianças e a perspectiva de, ao menos por uma fresta no paredão no qual se constitui a lógica consumista, estimularmos algum sentido libertário com força para orientar novas práticas sociais e oferecer o contato efetivo com a diversidade cultural que pulula no mundo.
A infância é um tema relevante em debate no Brasil há, pelo menos, trinta anos. Desde os anos 1980 que as preocupações com a escolaridade e o abandono de crianças nas grandes cidades ganharam visibilidade e passaram a ocupar discursos, alimentar projetos governamentais e não-governamentais e ocupar milhares de páginas de planejamentos de vários tipos. O problema é que essa relevância foi sendo traduzida em políticas públicas de maneira muito irregular.
Talvez não seja muito arriscado dizer que o tema “infância” ganhou espaço considerável nas mídias sociais à medida que passou a ser correlato dos debates no país sobre desenvolvimento. Crianças não escolarizadas que se tornariam mão-de-obra analfabeta e despreparada não podiam ser aceitas no país do futuro. Infantes abandonados aos olhos dos passantes eram poluição aos olhos do mundo. No Brasil, as crianças cumpriram por muito tempo um papel análogo à fama do próprio país: um eterno vir-a-ser, metáforas de uma nação inconclusa.
Nos últimos anos o tema da infância ganhou novos contornos e, necessariamente, passou a alimentar discursos e políticas sob novas perspectivas. Se no início do século passado criança era o que se chamava ‘crias’ da casa, de responsabilidade da família ou da vizinhança, agora aparece no centro do debate e sua fragilidade doméstica é substituída por sua visibilidade pública. Mesmo sabendo que a centralidade do tema da infância ainda é alimentada pelos debates e interesses referentes ao “desenvolvimento econômico”, também é preciso destacar os avanços provocados pela tríade “educação, cultura e direitos humanos” no que diz respeito ao tema.
Numa sociedade que fragmentou o conhecimento e também o exercício do poder, educação, cultura e direitos humanos se acercam da infância brasileira de maneiras distintas. Educação, mais estruturada, é a única que está representada em todos os municípios do Brasil - talvez apenas acompanhada das igrejas -: em cada cidade há, ao menos, uma escola, o que garante seu público. Além do corpo físico, a educação também é a de maior orçamento e claros instrumentos de gestão. Já os Direitos Humanos, com presença recente nas estruturas de governo, se relacionam com a infância brasileira a partir de uma pauta negativa: trabalho infantil, escravidão, violência. É a partir daí que se impõem sobre orçamentos e jornais e se insinuam no debate social.
A cultura, por outro lado, profundamente sedimentada como território do lúdico e do afetivo – aquilo que nos afeta sem coerção – talvez seja, entre as três, a que tenha a maior dívida com a infância. Historicamente, sua aproximação com o tema se deu por via indireta, por meio de políticas de fomento, de incentivo fiscal ou de editais públicos. Raras foram as políticas públicas de cultura – e aqui se inclui o audiovisual, claro – que se propuseram a dialogar com ele a partir do reconhecimento de seus direitos, suas carências e sua diversidade.
Mesmo reconhecendo a existência rarefeita de políticas de cultura para a infância e, principalmente, da boa experiência da literatura infantil que, mesmo via educação, consolidou-se como política pública com criação de bibliotecas abertas ao público, qualificação das bibliotecas escolares e publicações regulares, não se sedimentou no país a partir de um arranjo sistêmico.
As políticas de cultura voltadas às infâncias – uso aqui o plural para marcar à potencialização de uma diversidade que vai além do regional, mas envolve distintas fases, condições econômicas, tipos de escolas que freqüentam, se rural ou urbanos etc. – têm de, obrigatoriamente, estar articuladas com as políticas de educação, sobretudo por sua capilaridade e inteligência acumuladas, e com as políticas de direitos humanos: porque as políticas culturais, sobretudo quando vocacionadas às crianças, está tratando de valores. O mesmo deve acontecer com outras áreas de governo, como saúde e ocupação do espaço urbano, por exemplo, ainda que o eixo principal deva se dar com Educação e Direitos Humanos.
Acredito que devamos repensar nossas políticas culturais para que as buscas imaginativas para a transformação da sociedade estejam relacionadas não apenas a empreendimentos econômicos, mas a formas de solidariedade nutridas em uma visão mais complexa do mundo e em diálogo com as novas tecnologias. Não podemos pensar em políticas para a infância se não considerarmos que não vivemos mais em um mundo restrito, analógico e fraturado em culturas nacionais. Embora antigos conceitos ainda tenham valor e utilidade – como etnias, identidades, países e nações –, estamos todos sujeitos à participação em uma série de circuitos comunicacionais que nos põem em contato com muitas maneiras de viver. É nesse mundo multiconectado no qual vivem nossos filhos e netos e, portanto, é sob esta perspectiva que deve se estabelecer um novo diálogo.
Quando Emir Sader nos diz que o futuro do Brasil vai se definir no plano dos valores, não está negando os aspectos mais duros da labuta econômica, mas nos alertando para um embate ainda mais relevante: o dos valores que vivenciamos e cultivamos e, portanto, do futuro que praticamos. Talvez por isso devamos nos lembrar que a dimensão dos direitos culturais antecede à dimensão econômica da cultura, ainda que não se contraponha nem se subordine a ela. A relação entre infância e mídia, portanto, pode ser chave para aquela disputa de valores, tanto por seu valor simbólico e cultural como por seu importantíssimo impacto sócio-econômico. Um pacto pela infância no Brasil deve considerar o papel do audiovisual para a sua efetivação. Estamos falando de uma ferramenta que é muito útil e oportuna a políticas de formação e de garantia de direitos, mas, também absolutamente adequada para entretenimento e explicitação dos vários mundos com os quais podemos estar conectados. Com tais funcionalidades e não sem riscos, torna-se vetor para a consolidação de mercados e para o dinamismo cultural.
Na prática, há mecanismos que devem ser acionados para dar concretude ao discurso. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), sob a coordenação do Ministério da Cultura/Ancine, é um deles, devendo criar linhas específicas de desenvolvimento de projetos, produção e distribuição de conteúdos dirigidos às crianças. A Educação, com a incorporação crescente do audiovisual como ferramenta pedagógica e de conhecimento, é outro. Os organismos de Direitos Humanos, com sua capacidade de articulação com os diversos órgãos e sedução do público, têm de ser linha de frente, estimulando, talvez, a aprovação de uma lei de responsabilidade com as crianças brasileiras. Na mesma linha, vale retomar um bom debate sobre o modelo urbano que temos no Brasil, onde, muitas vezes, os espaços (físicos) de sociabilidade são substituídos pela sanha imobiliária. Fundamental, porém, é que um pacto pela infância se constitua num grande pacto federativo no qual todos os entes se comprometam com metas e políticas específicas e articuladas, consolidando, assim, uma nova hegemonia.
É muito importante que consideremos que o universo da cultura é o encontro de muitas éticas e estéticas, e isto, por si só, já deve nos estimular à busca de um ambiente mais libertário e disposto à superação de preconceitos: à negação, portanto, da cotidiana castração infantil. Para tanto, é preciso fazer com que nos multipliquemos por meio de buscas imaginativas, isto é, por meio de um diálogo que não se restrinja à mera conversação, mas se estabeleça quando tivemos algo a dizer, disposição a escutar e o respeito pelo dissenso.
São muitas as infâncias: tantas quantas forem as idéias, práticas e discursos sobre elas. Assim, quando propomos que haja um Pacto pela Infância no Brasil, propomos que haja políticas públicas de audiovisual para a infância e que estas sejam ferramentas à disposição de uma nova lógica, na qual as infâncias brasileiras não sejam tratadas pelo Estado e pela sociedade como períodos de transição ou mero mercado consumidor, mas, na sua plenitude, exercitem a multiplicidade de idéias, práticas e discursos elaborados socialmente. Com este pacto, ao mesmo tempo em que implementaremos políticas e estimularemos novas práticas em torno das infâncias, estaremos conformando um campo a partir do qual se negociarão novos direitos, novos modos e novos territórios de ser infância.
Glauber Piva é diretor da Agência nacional do Cinema - Ancine
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