Não basta criar UPPs sociais para parecer que se está atendendo às necessidades da população. As mudanças exigem caráter institucional e estruturante ( texto publicado pela revista Brasil de Fato - abril/2014)
Adair Rocha
Segundo a estratégia governamental de implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro, nesse momento, fecha-se um círculo que se iniciou com um espelho, uma favela relativamente pequena e com história pública de confronto armado -- a favela Santa Marta. De acordo com o primeiro coordenador dessa ação local, coronel Robson da Silva Rodrigues, esse foi o critério determinado para a ação que se iniciou em 20 de novembro de 2008.
A retomada de territórios pelo poder público com o consequente desarmamento do tráfico de drogas e a reeducação da ação policial junto aos moradores, especialmente dessa expressão da cidade, que são as favelas, consistia no principal objetivo.
Passados pouco mais de quatro anos, o projeto UPP vai ‘ocupando’ várias outras favelas, inclusive, entre as maiores, como é o caso do Alemão, da Rocinha, da Mangueira, de Manguinhos, e na região da Tijuca, tendo como exemplo o Borel.
As contradições se explicitam com embates fatais, com baixas nos atores da guerra -- polícia e tráfico --, mas com grande perda para a população em geral, vítima de ‘balas não tão perdidas’. Diga-se de Cláudia, recentemente arrastada por uma viatura policial em praça pública, pelas ruas de Madureira.
Assim nascem as UPPs com o objetivo de enfrentar a questão da prática da violência na cidade do Rio de Janeiro, que recebe grandes eventos, tais como a Jornada Mundial da Juventude, Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas.
Quase às vésperas da Copa, chegou a vez da tomada da Maré – esse conjunto de favelas, dezenove ao todo, de Nova Holanda às vizinhanças de Ramos, passando pela Vila do João. Esse sim é um dos lugares estratégicos da cidade, pois quase todas as chegadas e saídas do Brasil e do mundo, por terra ou por ar, passa por esse conjunto de favelas, que se avizinha e se frequenta com um dos universos estratégicos do saber, a Ilha do Fundão, sede da maior parte da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
De um lado, território conflagrado pela disputa de domínio de espaço pelas principais vertentes da ação do tráfico e da polícia. De outro, territórios absolutamente expressivos nas formas de resistência através do desenvolvimento de projetos culturais e políticos como vêm provando a atuação de mídias locais comunitárias como o Jornal Cidadão, a Rede das Marés e outros, bem como o CEASM – Centro de Ações Solidárias da Maré, o Observatório de Favelas, o Museu da Maré, que se impõem como potência da cultura e da política pública de impacto na cidade. Setores estes que vêm, inclusive, contribuindo para a construção de uma visão crítica e ampliada de grande parte da população sobre essa política de segurança.
No entanto, verdadeira gestão territorial tem se dado na linha de invasão e de tomada por parte dos setores armados com todo o seu arsenal nos diferentes entes federados: exército, marinha e polícia.
À essa altura já se poderia perguntar que contribuição concreta para a vida da população tem sido trazida pelas UPPs. Sem dúvida que é algo positivo que está no fato da população que vive nas favelas se ver livre das disputas armadas. Outra coisa é a evidência de que toda a política pública, especialmente a de segurança, impacta a vida da cidade. A expressão “pacificação” diz respeito, sobretudo, aos espaços urbanos que já resolveram o acesso às políticas governamentais e públicas.
Outra pergunta importante: que modelo de UPP seria a representação legítima da população? E qual modelo de estado melhor corresponderia à sua gestão? Estado mínimo, estado patrão, ou estado democrático?
Certamente, com claras e históricas conquistas estamos construindo o estado democrático, sempre inconcluso. Sendo assim, o caminho mais seguro é o que conta com o protagonismo da sociedade. Coincidentemente, todas as favelas com UPP até agora, desde os anos 1970, vêm criando movimentos culturais, associativos e políticos com autonomia.
Portanto, essa mesma gestão territorial que permite a ação dos entes federados com relação às forças armadas, com muito mais rigor, deve ser condição sine qua non para o estabelecimento de políticas públicas nas regiões empobrecidas.
O estado democrático exige a passagem de políticas governamentais para políticas públicas que pressupõem a participação autônoma e livre da sociedade, e isso ainda é dívida. Não basta criar UPPs sociais para parecer que se está atendendo às necessidades da população. As mudanças exigem caráter institucional e estruturante, portanto.
Adair Rocha é professor de Comunicação na PUC- Rio e na UERJ, e autor de “Cidade cerzida: a costura da cidadania no Santa Marta”.