sábado, 21 de março de 2015

SALINA

OS NEGROS GUERREIROS E AS MULHERES GUERREIRAS POR SI MESM@S

(por Geovane Barone)

Salina (a última vértebra), o novo espetáculo da Cia. Amok, é com certeza um dos melhores espetáculos desta temporada. Dirigido por Ana Teixeira e Sthephane Brodt, está em cartaz até 29 de março no Teatro SESC Copacabana. Rico em imagens, cores, sons, movimentos corporais aliado a força de excelentes atores e atrizes negr@s.Somos levados na arena do começo ao fim para um universo onde o esforço e a beleza são explorados ao extremo. Três horas de prazer sinestésico: a plateia é levada a um ritual, ficamos tão imersos que nem nos damos conta do tempo fora do palco.

     A personagem-título é obrigada a casar com um homem (que não queria) por determinação da família do noivo. Tudo em função da lei de casta e de títulos. Ela nega e diz querer casar com o irmão dele. Quer ter o direito de escolher e rompe com a tradição. Não sendo ouvida, jura ódio eterno ao marido. E passa a ser violentada pelo mesmo. Até nascer um filho que ela detesta tanto como o pai: Mamuyê Djimba. Ferido numa guerra sangrenta, o marido pede ajuda a Salina que nega. Ela é banida da cidade pela lei do reino e passa a viver no deserto. Sozinha  tem outro filho pelo ódio e prepara formas de se vingar, enquanto o seu amado guerreiro - irmão do seu ex-marido - Kano Djimba reina.
      No segundo ato, um momento de destaque é quando a esposa de Djimba, Aike encontra com Salina -  já velha e desprezada - e oferece um de seus filhos para ela cuidar como pedido de perdão pelo seu longo sofrimento. Momento que Aike faz o papel do espectador que tem compaixão pela protagonista. Momento catártico e dialético. O filho parece ser o símbolo do poder do perdão e do amor como caminho, mesmo quando estamos imersos no ódio.


      O elenco composto por  Luciana Lopes, Sergio Ricardo Loureiro, Tatiana Tibúrcio, André Lemos, Thiago Catarino, Ariane Hime, Graciana Valladares, Reinaldo Júnior, Sol Miranda, Robson Freire. Na  sonoplastia ao vivo o magestral músico e ator Fábio Soares, - onde os cânticos em yorubá e  o toque forte do atabaque desenham e dão mais expressividade a toda cena. Atuações fortes, corpos que falam, vozes que revelam emoções, coletividade à serviço de Dionísio e Salina. Vemos em cena a linguagem teatral em potencialidade. Um teatro sonhado por Artaud, Grotowski e Brecht. Um teatro onde o palco fala com toda a sua semiologia. Cada movimento, cada gesto, cada fala ganha uma tensão poética. Cada ação é metricamente modelada. O figurino do casal de diretores é desenhado com roupas de bastante brilho e cor.- bem ao estilo dos clãs luxuosos de negros guerreiros, ricos e poderosos e com a benção dos orixás. A luz de Renato Machado é precisa, básica e deixa visível as cores presentes no palco e nas atuações sem maneirismos. Um trabalho excelente da Cia Amok.

       A peça, escrita pelo autor francês Laurent Gaudé ,reconhecido por explorar em suas obras os limites morais do ser humano, é um convite a reflexão sobre o ódio e o amor, a vingança e o perdão. Além de tratar da submissão feminina e a luta pela emancipação da mulher numa sociedade fechada pela tradição e pela lei de castas. O espectador acompanha no círculo, nada roda, imers@ na celebração. Onde conflitos pessoais passam a ser conflitos públicos. Onde o teatro volta a ser a ágora grega e deixa de ser apenas extensão do quarto.


         Por isso, precisamos mais de espetáculos assim. É um grito, um desabafo de que o teatro é feito para comunidade e pela comunidade. Que a história da Salina é também a história de tantas mulheres escravizadas, violentadas que vemos nos jornais e de que é bom termos atores negros em papéis complexos e não subjugados. Como dizia a música "Branco se você soubesse o valor que o negro tem..."

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