Por Pamela Mascarenhas
A condenação do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva a 9 anos e 6 meses de prisão pelos crimes de
corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá, pelo
juiz federal Sérgio Moro, gerou grande repercussão no campo jurídico. Juristas
consultados pelo JB apontam que há questões problemáticas no processo, como a
escolha de argumentos políticos no lugar de argumentos técnicos.
O ex-presidente, no dia seguinte
do anúncio da condenação, salientou que "a Justiça não pode mentir, não
pode tomar decisão política, tem que tomar decisão baseada nos autos".
"A única prova que existe nesse processo é a prova da minha
inocência", frisou na ocasião.
O professor da FGV Direito Rio
Thiago Bottino destaca que o juiz "não poderia fazer considerações que não
fossem estritamente jurídicas". Salah H. Khaled Jr., professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), ressalta que
a sentença "soa como mera conjectura", e que "uma condenação não
admite ilações". O professor de Direito Penal e Processual Penal, Fernando
Hideo Lacerda, acrescenta que "não há prova para condenação pelo crime de
corrupção e não há sequer embasamento jurídico para condenação pelo crime de
lavagem de dinheiro".
A professora da Fundação Getulio
Vargas (FGV) Silvana Batini, por sua vez, acredita que "as provas estão na
sentença". "O juiz Sérgio Moro formou sua convicção com uma série de
provas descritas". Ela preferiu, entretanto, não entrar no mérito da
materialidade do processo e comentar a sentença do juiz de Curitiba.
A professora reforçou que
"uma sentença sempre gera descontentamento de uma das partes", e que
exatamente por isto há o chamado duplo grau de jurisdição -- instituto segundo
o qual todas as decisões judiciais definitivas de um processo podem ser
submetidas a um novo julgamento. "Agora o TRF4 vai poder reanalisar e
fazer um outro juízo."
Desembargadores da 8ª Turma do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre, serão os
responsáveis por decidir o futuro do ex-presidente Lula. Eles são responsáveis
pelas revisão das sentenças do juiz de primeira instância Sergio Moro.
"A questão é o TRF4 agora
votar [o processo] o mais rápido possível, porque a população tem direito de
saber quais os candidatos viáveis para a eleição com antecedência, para fazer
escolhas num ambiente mais racional", comenta Batini.
Em entrevista coletiva, contudo,
o presidente do TRF4, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, informou que o caso
deve ser julgado até agosto de 2018, pouco antes das eleições
Processo
jurídico com argumentos políticos?
Para
Thiago Bottino da FGV - sentença não está técnica
Uma sentença, explica o professor
da FGV Thiago Bottino, mostra os elementos que convenceram o autor da decisão,
não necessariamente mostra todo o conteúdo dos autos. Pode haver documentos,
então, que não foram incluídos na decisão de Sérgio Moro. "Seria
impossível", inclusive, que a condenação apresentasse todo o material. Se
está certa ou errada, aponta o professor, não é possível afirmar. Ele analisa,
contudo, pontos em que acredita que a sentença "não está técnica".
A primeira questão que Bottino
destaca é relacionada aos artigos 958, 959 e 960 da sentença de Moro contra
Lula.
958. Como defesa na presente ação
penal, tem ele, orientado por seus advogados, adotado táticas bastante
questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de
queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei,
Procurador da República e Delegado, com a propositura de ações de indenização
por crimes contra a honra. Até mesmo promoveu ação de indenização contra
testemunha e que foi julgada improcedente, além de ação de indenização contra
jornalistas que revelaram fatos relevantes sobre o presente caso, também
julgada improcedente (tópico II.1 a II.4). Tem ainda proferido declarações
públicas no mínimo inadequadas sobre o processo, por exemplo sugerindo que se
assumir o poder irá prender os Procuradores da República ou Delegados da
Polícia Federal (05 de maio de 2017, "se eles não me prenderem logo quem
sabe um dia eu mando prendê-los pelas mentiras que eles contam, conforme
http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/se-eles-nao-me-prenderemlogo-quem-sabe-eu-mando-prende-los-diz-lula/).
Essas condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da Justiça,
dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever.
959. Aliando esse comportamento
com os episódios de orientação a terceiros para destruição de provas, até
caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva.
960. Entretanto [sic],
considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente [sic] da República não
deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o
julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias
da condenação. Assim, poderá o ex-Presidente Luiz apresentar a sua apelação em
liberdade.
Para Bottino, há contradição em indicar
a existência de elementos para cogitar a decretação de prisão preventa por
conta de um comportamento do ex-presidente e depoimentos de colaboradores de
que teria tentado destruir provas, e ao mesmo tempo dizer não vai fazê-lo
porque isto envolveria "traumas". "Eu acho isso contraditório,
se ele vê elementos que justificam a prisão, não é uma decisão técnica dizer
que não vai prender por causa de um suposto eventual trauma. Não é um argumento
técnico, é um argumento político. E, neste ponto, ele beneficiou Lula."
Por outro lado, o que Moro coloca
como elemento para uma prisão também é "inapropriado", na visão de
Bottino. "Os elementos que levaram ele a entender cabível a prisão são, em
primeiro lugar, um depoimento na imprensa. Mas ele [Lula] tem liberdade de
expressão, ele pode falar o que ele quiser. Isto não é razão que justifique a
prisão de ninguém, o que justifica é quando de fato a pessoa faz alguma coisa,
e não 'palavras ao vento'. Ele diz que isso é uma forma de intimidar a Justiça.
Não é."
Outra questão, explica o
professor da FGV, é que Moro indica que o ex-presidente propôs ação civil
contra testemunha e ações. "Isso não é intimidar testemunha. Ele tem
direito de propor ação contra quem ele quiser, se ele quiser. Propor uma ação
não pode ser caracterizado como intimidação. Se os delatores dizem que ele
queria, palavra do delator não é prova. Moro declara que tem motivo pra prender
e não prende, e o que ele argumenta que seria o motivo está fora da previsão da
lei. Faltou técnica."
Outra questão complicada da
sentença, para Bottino, é a fundamentação da pena, a chamada
"dosimetria". Moro escreve no parágrafo 948 sobre a pena para crime
de corrupção ativa e para lavagem de dinheiro (confira nas páginas 233 a 235 da
sentença), e diz que vai aumentar a pena falando em uma "culpabilidade
elevada", e que as circunstâncias do crime envolveram R$ 16 milhões.
Contudo, explica o professor, isto não se configuraria como circunstância e,
sim, como consequência. "Ele confundiu circunstância com consequência."
"Na minha opinião, a
consequência são os R$ 16 milhões. Ele atesta que este valor foi para o PT, mas
o Lula foi condenado por receber R$ 2 milhões", completa Bottino,
ressaltando que, pelo fato de ter sido presidente, Moro apontou para a questão
da culpabilidade. Diz a sentença: A responsabilidade de um Presidente da
República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando
pratica crimes. De acordo com o professor, trata-se de uma questão "muito
subjetiva". O fato de ele ter sido presidente, por exemplo, poderia ter
sido utilizada para tomar uma decisão em outra direção.
A sentença de Moro, então, teria
uma confusão de categorias, de culpabilidade, consequência e circunstância.
"Ele fala que essa culpabilidade também poderia ser considerada uma
personalidade negativa. Eu não acho que o juiz deva fazer considerações sobre a
personalidade do réu. Não acho que isto seja fundamento apto para aumentar ou
reduzir a pena. Deixar de prender alguém para evitar trauma é um argumento
político e não jurídico, aumentar a pena com base no que foi dito é também um
critério político. O juiz não poderia fazer considerações que não fossem
estritamente jurídicas."
Questionado sobre o argumento da
defesa do ex-presidente, de que os processos contra ele inserem-se no contexto
do lawfare, Bottino declarou:
"Há algumas posturas de Sérgio Moro como
juiz que eu considero que deveriam ser evitadas". "Ele ter sido
protagonista na condução dos interrogatórios... O juiz só pode perguntar
supletivamente, o que a gente vê nos depoimentos é que quem mais pergunta é o
próprio, não é isto que o código orienta."
O art 212 do do Código de
Processo Penal orienta: As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente
à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não
tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
(Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) Parágrafo único. Sobre os pontos não
esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. (Incluído pela Lei nº
11.690, de 2008)
"O artigo determina que quem
faz perguntas é o MP e a defesa, e que o juiz só deveria perguntar a situação
para complementar. Mas o que a gente vê na prática é ele sendo protagonista, a
pessoa que mais pergunta. O que não é o caso. O juiz só vai perguntar sobre
pontos não esclarecidos. Complementar é uma coisa muito pontual, o juiz não é
parte, tem uma relação mais distante, não deveria ser ele o produtor de
prova."
Salah H. Khaled Jr. , professor da FURG -
"Se a dúvida permanece, a presunção de
inocência do acusado deve prevalecer"
O professor Salah acrescenta que
a "sentença não trouxe novidades". "Era previsível que Moro
condenaria Lula, mas tudo ainda soa como mera conjectura. Uma condenação não
admite ilações. O lastro probatório da narrativa condenatória não deve deixar
margem para dúvida. Se a dúvida permanece, a presunção de inocência do acusado
deve prevalecer. Penso que não há elementos suficientes para a condenação do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo em questão."
Sobre a consideração da palavra
de delatores, Salah questiona:
"Por que confiar na palavra de um delator?
Ele é obrigado a dizer o que os negociadores querem ouvir. Se nada tem a dizer,
obviamente não tem com o que negociar e, logo, é preciso inventar."
A ligação de Lula ao triplex,
para o professor, é um precedente
"temerário". "Como alguém pode provar que não é proprietário de
algo, quando o acusador insiste que sim? A transmissão da propriedade somente
se dá com o registro. Sem registro, não há propriedade. Vamos supor que você
tenha negociado a compra de um imóvel e que ela não tenha se consolidado. O imóvel
permanece propriedade do proprietário original, por óbvio. Mas vamos supor que
o acusador insista que o proprietário original é um laranja? Não houve sequer
aquisição por um terceiro que cumpriria a função de laranja. Qualquer servidor
público em situação equivalente pode ser criminalizado com base nisso, como
percebeu meu amigo advogado Márcio Augusto Paixão."
Sobre o argumento da defesa de
Lula, relacionado ao chamado lawfare, o professor explica que a expressão
indica o uso indevido de recursos jurídicos para perseguição de caráter
político.
"Não me parece que a utilização do conceito [pela defesa de
Lula] seja descabida. Pelo contrário. Em várias oportunidades foi cristalina a
intenção de influenciar o campo político. Quando Moro deliberadamente divulgou
a conversa entre Lula e Dilma, cometeu crime. Ele deveria ter remetido
imediatamente ao Supremo [Tribunal Federal] a gravação que incluía diálogo de
autoridade com foro privilegiado. Pouco importa que tenha pedido desculpas
depois. Agiu para desestabilizar a República e poderia ter provocado
derramamento de sangue."
"Ao cidadão comum não é dada
a oportunidade de pedir desculpas quando comete crimes para se livrar da
responsabilidade sobre eles. Mas as liberalidades de Moro continuam sendo
toleradas. Moro se comporta como um juiz inquisidor. Age como se fosse
acusador. Parte em busca do que precisa para condenar. A democracia não pode
conviver com juízes assim. Não se espera que Lula tenha tratamento
diferenciado, para pior ou melhor. Espera-se que as regras do devido processo
legal valham para ele, como para todos os demais brasileiros. Não um processo
penal do inimigo, com um juiz que se comportou como se fosse antagonista da
defesa. Sem dúvida, isso se encaixa na definição de lawfare", conclui
Salah.
Fernando Hideo Lacerda,
professor de Direito Penal e Processual Penal –
“não há prova para
condenação pelo crime de corrupção e não há sequer embasamento jurídico para
condenação pelo crime de lavagem de dinheiro"
Fernando Hideo Lacerda reforça
que "não há materialidade para condenação pelo crime de corrupção" e
que "não há sequer embasamento jurídico para condenação pelo crime de
lavagem de dinheiro". "O fato que embasa a condenação do ex-presidente
Lula foi definido pelo juiz como a 'propriedade de fato' de um apartamento no
Guarujá. Diante disso, ele foi condenado por corrupção (porque teria recebido
esse apartamento reformado como vantagem indevida do Grupo OAS em razão de
contratos com a Petrobras) e lavagem de dinheiro (porque teria ocultado e
dissimulado a titularidade desse imóvel)", comenta o professor.
Não existe o conceito 'proprietário de fato' em nosso
ordenamento jurídico
"Diante disso, acho importante ressaltarmos três
pontos", continua:
"Em primeiro lugar, não existe o conceito
'proprietário de fato' em nosso ordenamento jurídico. O Código Civil define que
proprietário é quem tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Já essa figura que o juiz define como 'proprietário de fato' se aproxima do que
a lei chama de possuidor, sendo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou
não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. De qualquer forma, seria
necessário comprovar que o ex-presidente Lula tinha (de fato ou de direito)
algum dos poderes de proprietário, ou seja: usar, gozar, dispor ou reivindicar
a coisa. E não há qualquer prova, seja documental ou testemunhal, que indique a
existência de tais poderes em relação ao imóvel do Guarujá."
Ele prossegue:
"Em segundo lugar, ainda que
o ex-presidente Lula fosse proprietário do apartamento, o crime de corrupção
não exige apenas a existência de uma vantagem indevida, mas é necessário
comprovar qual a contrapartida dada ou prometida pelo funcionário público. Em
outras palavras, ainda que um grupo empresarial tivesse vendido um imóvel a
agente público abaixo do preço de mercado isso não basta para configurar
corrupção, mas é necessário que se demonstre qual a contrapartida do servidor
público."
Lacerda destaca que, no caso
concreto, o ex-presidente foi condenado pelo recebimento de vantagem indevida
do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a
Petrobras.
"Logo, era de rigor que se
comprovasse não apenas a propriedade do imóvel, o que o juiz chamou de
'propriedade de fato' do apartamento, mas também a existência de provas de que
a contrapartida a essa vantagem indevida consistiu em ilegalidades relacionadas
à Petrobras."
"Nesse sentido, o juiz considerou
como prova da propriedade do imóvel: documentos sobre tratativas acerca da
aquisição pela Dona Marisa Letícia de cotas do edifício enquanto ainda estava
vinculado à Bancoop, sendo que não há um documento sequer que demonstre que o
apartamento pertenceu ao ex-presidente e sua família; e como prova de que a
contrapartida consistiu em ilegalidades relacionadas à Petrobras: apenas e
tão-somente a palavra dos delatores informais Léo Pinheiro e Agenor Medeiros
(ex-diretor do Grupo OAS), sendo que tais depoimentos jamais poderiam ser
considerados como prova porque declarações obtidas mediante delação são apenas
“meios de obtenção de prova” (devem indicar o caminho para se chegar a provas)
e não efetivamente “meios de prova”. Portanto, não há materialidade para
condenação pelo crime de corrupção", continua o professor.
"Em terceiro lugar, ainda
pior é a condenação em relação ao crime de lavagem de dinheiro. A hipótese
condenatória é de que houve lavagem envolvendo a ocultação e dissimulação da
titularidade do apartamento e do beneficiário das reformas realizadas. Ou seja,
o ex-presidente Lula teria recebido uma vantagem do Grupo OAS na forma de um
apartamento reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem
pela "dissimulação e ocultação" de patrimônio. Isso é um grave erro
jurídico. Em síntese, lavagem significa dar aparência de licitude a um capital
ilícito com objetivo de reintroduzir esse dinheiro sujo no mercado. É o que
popularmente se conhece como "esquentar o dinheiro". Exemplo clássico:
o sujeito monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro,
pois se capitaliza com dinheiro sujo como se fosse lucro do negócio. Para uma
operação imobiliária ser caracterizada como lavagem de dinheiro, deve haver
essa intenção de reintroduzir um capital ilícito fraudulentamente com aparência
de licitude. Isso evidentemente não houve, sequer no cenário imaginado pela
acusação!"
Para Lacerda, não faz o menor
sentido falar em lavagem nesses casos de suposta "ocultação" de um
capital ilícito.
"Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que
envolva dinheiro seria lavagem. Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco,
receptação, furto... Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo esse
raciocínio, porque obviamente ninguém bota esses recursos no banco!"
"Portanto, não há prova para
condenação pelo crime de corrupção e não há sequer embasamento jurídico para
condenação pelo crime de lavagem de dinheiro", conclui.
Fonte: Jornal do Brasil – notícias online