O Setorial de Cultura do PT do Rio de Janeiro, no dia 23 de fevereiro, promoveu seminário sobre Comunicação e Cultura e convidou militantes dos movimentos pela democratização das comunicações para debater com os ativistas de diversos setores culturais a respeito das perspectivas para o novo marco regulatório para as comunicações no Brasil.
O encontro teve o grande mérito de aproximar a instância partidária dessa intersecção de lutas entre militantes do campo da Cultura e da Comunicação, sendo desejável que a iniciativa se repita e se alastre para outros estados. Aproveitando essa oportunidade, gostaria de chamar atenção para um aspecto desse processo de intensa transformação por que passa o campo das comunicações, que é seu efeito sobre as políticas públicas para o audiovisual, e seus impactos para o conjunto dos setores da Cultura.
Em 2007 começou a tramitar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 29 (atualmente tramitando no Senado com o a designação PLC 116), que disciplina a entrada das empresas de telecomunicação no negócio de distribuição de Televisão por Assinatura (TVA) e, entre outras coisas, cria cotas de conteúdo brasileiro de produção independente nos canais que transmitem majoritariamente obras audiovisuais e cotas de canais brasileiros independentes nos pacotes. Desde então, diversas forças econômicas e sociais vêm se posicionando nesse debate.
Grandes empresas internacionais de telecomunicação (as Telecom) que entraram no país pela porta da privatização da telefonia, muito mais capitalizadas que as empresas de radiodifusão, estão operando no mercado brasileiro de provimento de internet e TVA usando brechas do arranjo regulatório em vigor.
Percebendo a inevitabilidade desse processo as empresas programadoras e empacotadoras, brasileiras, assim como as estrangeiras que atuam no país, tentam preservar essa parte do negócio em suas mãos, impedindo que as Telecom possam produzir e programar conteúdos, algumas delas aceitando a política de cotas de conteúdo audiovisual brasileiro, desde que se evite a concorrência das Teles no negócio de produção e programação.
Esse novo cenário na TVA é apenas parte das enormes transformações por que passa o campo das comunicações no mundo todo, que está fazendo convergir mais do que as mídias, mas também setores significativos de economias como a do audiovisual, da música, das telecomunicações e da informação em uma nova grande e complexa economia da comunicação convergente.
Essa nova realidade passou a exigir uma mudança mais completa e mais complexa no marco legal do que aquela que o PLC 116 é capaz de proporcionar, e terminou ensejando uma nova proposta de arranjo institucional para a comunicação no Brasil elaborada pelo ex ministro da Secretaria de Comunicação Social Franklin Martins. Hoje este projeto está em avaliação no Ministério das Comunicações, sendo que o ministro Paulo Bernardo já avisou que pretende fazer um amplo debate na sociedade sobre esse tema
Na verdade, esse debate já vem ocorrendo há décadas e e teve como um de seus pontos altos a I Conferência Nacional de Comunicação. Neste processo, muitos atores já se posicionarm para esse jogo segundo seus interesses, e os interesses são muitos.
Há o interesse das Telecom em ampliar seu campo de atuação distribuindo internet e audiovisual, há o interesse das programadoras de manter sua primazia na programação de pacotes de canais com o menor custo e o maior preço possível; há o interesse de novas empresas brasileiras de produção, distribuição e empacotamento de conteúdo em conquistar espaço nesse mercado; há o surgimento de novos modelos de negócio na internet que interessam novos e velhos agentes econômicos, há novas modalidades de marketing que se desdobram dos conceitos de interatividade e portabilidade; há novas e novíssimas possibilidades de fruição estética, e há o interesse público nisso tudo, que se traduz tanto pela necessidade de fortalecer a posição dos brasileiros nesse novo mercado, quanto pela urgente necessidade de criar espaços de proteção e promoção para a diversidade cultural brasileira.
O entendimento desse processo é algo que interessa ao conjunto da sociedade brasileira, mas, de modo mais específico, interessa a todos os segmentos da Cultura. Pois o que vier a ocorrer com a economia do audiovisual, no contexto dessas transformações tornadas possíveis pelo cenário de convergência, servira de parâmetro para todos os demais segmentos culturais.
O longo e complexo sistema de produção e comercialização do conteúdo audiovisual - seja uma produção tipicamente industrial, realizada em processos colaborativos, ou até mesmo em bases quase artesanais - sempre impacta outras cadeias produtivas da Cultura como a do livro, das artes cênicas e da música, por exemplo. Esse impacto se dá pelo emprego de profissionais, pelo intercâmbio de experiências estéticas, em relação aos direitos autorais e direitos de exploração econômica, pelo licenciamento de marcas, e por meio de outras formas de relacionamento que a cada dia se multiplicam.
No entanto, em face desse novo contexto de convergência, o maior impacto sobre os demais setores da economia da Cultura virá dos modelos de negócio que o audiovisual vier a estabelecer com patrocinadores, investidores e coprodutores; das estratégias que se criarão para exploração das marcas e da publicidade associada às obras; dos novos formatos que se tornarão possíveis nesse ambiente de convergência e das modalidades de fomento que certamente precisarão ser desenvolvidas junto ao Estado. Tudo isso vai gerar novos paradigmas de sustentabilidade que poderão se aplicar a outros setores da Economia da Cultura, mesmo os que não parecem ser diretamente afetados pela digitalização.
Um dos principais impactos se dará na formação do gosto e das referências culturais das crianças, não apenas por meio dos filmes, mas também por meio dos jogos eletrônicos e obras formatadas diretamente para consumo na web. O audiovisual brasileiro tem um papel estratégico em relação à educação, que precisa de conteúdos brasileiros de qualidade para se relacionar com crianças que crescem em frente aos computadores e aprendem rapidamente a ser seus próprios programadores, caso contrário, valores e conceitos que eles manipularão na rede não guardarão nenhuma relação com a realidade do nosso país, o que é gravíssimo para quem pretende forjar de fato um projeto de Nação.
A mera existência do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) indica que o governo entende a necessidade de fazer chegar a todo cidadão e cidadã uma ferramenta que o torne capaz de produzir informação e não somente recebê-la. A mesma preocupação deve orientar uma política nacional de fomento à produção de conteúdo digital, pois é importante que existam conteúdos audiovisuais brasileiros produzidos pelas grandes empresas de radiodifusão, mas também pelas empresas produtoras independentes, pelos centros de pesquisa e até mesmo pelo cidadão comum.
Isso é uma parte de tudo que está em jogo no debate sobre o novo marco regulatório das comunicações, e é por isso que deve envolver o conjunto dos movimentos culturais brasileiros e não apenas aqueles diretamente envolvidos com a produção audiovisual e cultura digital. É um debate deve interessar, também, aos militantes do Circo, do Teatro, da Música, Arte Educadores, gestores culturais do poder público, terceiro setor e das empresas privadas, instituições de ensino, grupos de cultura tradicional, museus, bibliotecas, enfim, do conjunto dos setores organizados que militam no movimento cultural.
A política nacional de fomento ao conteúdo na internet deve caber aos agentes públicos que operam com política cultural, e isso implica em interferir na formulação do novo arcabouço regulatório das comunicações no Brasil. Caso contrário, não é apenas a dimensão cultural da política de fomento ao conteúdo na rede que fica prejudicada, mas também nossa governança sobre aspectos fundamentais do sistema de comunicação que afetam a economia da Cultura.
A todos os setores da Cultura interessa uma economia do audiovisual robusta e diversificada, com espaço para a pesquisa; para a obra autoral, para a obra educativa, para a obra popular, para o puro entretenimento; para produtos de nicho e produtos de massa; para discursos conservadores e transformadores; para a emergência de novos empreendedores e novos modelos de negócio; para a expertise acumulada pelas nossas empresas de radiodifusão e para novos processos criativos, gerando um complexo sistêmico e articulado que abra as janelas de oportunidades para os brasileiros, aqui e no mundo, e as janelas da criatividade e da valorização da diversidade de opiniões e pontos de vista.
O embate de interesses é legítimo na democracia e deve ser feito de forma clara e transparente, mas é necessário que a sociedade perceba o que está em jogo para se posicionar nessa disputa. Esse jogo continua a ser jogado mais em salas fechadas do que na arena pública e cabe aos militantes culturais apresentar o próximo lance.
Roberto Gonçalves de Lima é dramaturgo e gestor cultural.