quinta-feira, 2 de junho de 2011

Adeus guerreiro, Abdias.

Por Roberta Martins

Abdias do Nascimento esteve por aqui desde o distante 1914 até agorinha em 2011, viveu muito... e em seus bem vividos 97 anos, foi um exemplo de firmeza e coerência e no mais perfeito sentido, um grande Mestre. Sempre um protagonista em suas múltiplas atividades, seja como dramaturgo, ator, acadêmico, político, artista plástico, poeta... E mais, como poucos no Brasil, Abdias do Nascimento associou de maneira indivisível o fazer artístico a uma proposta política, sempre se colocando como um combatente na luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra.

Como disse Nei Lopes: "Abdias é o elo maior do nosso movimento negro, levando em conta que ele é do início do século passado, quando a discriminação era ainda mais clara. Mesmo hoje, um pouco debilitado [pelas condições de saúde], quando ele abre a boca, sabemos que é o nosso baobá [árvore sagrada no candomblé], guarda toda a vida e história de nossa africanidade".

A militância política de Abdias vem da juventude na década de 1930, desde aquela época refletindo os desafios da vida em um Brasil racista. Integrou a Frente Negra Brasileira, a mais importante entidade negra na primeira metade do século XX no campo sócio-político. Participou dos primeiros congressos de negros no país em que tinham como objetivo discutir formas de resistência à discriminação racial e da fundação do jornal Quilombo e do Museu de Arte Negra.

As origens da participação política de Abdias se encontram no racismo brasileiro e sua combatividade, sem dúvida, reflete a sociedade dos anos 30, mas é viajando pela América Latina, no início da década de 1940, que o Mestre associa de maneira determinante cultura, política e a questão negra. Em especial em sua passagem pelo Peru, quando assiste ao espetáculo O Imperador Jones, de Eugene O'Neill, e vê o personagem central ser interpretado por um ator branco tingido de negro, o que também acontecia no Brasil, fortalecendo a determinação de criar um teatro que valorizasse os artistas negros. Após ter estudado no Teatro Del Pueblo de Buenos Aires, ao retornar ao Brasil em 1941, Abdias é preso por crime de resistência. Ao cumprir pena na penitenciária do Carandiru, organiza um grupo de presos que escrevem e encenam os próprios textos e funda o ‘Teatro do Sentenciado’.

Anos depois em 1944, com o objetivo de valorizar o negro no teatro e a criação de uma nova dramaturgia, inicia o Teatro Experimental do Negro – TEN, que fez mais do que levar negros aos palcos, significou uma iniciativa pioneira, que mobilizou a produção de novos textos e propiciou o surgimento de novos atores e grupos. Além disso, disseminou uma discussão que permaneceria em aberto: a ausência do negro como atores e nas histórias contadas pela dramaturgia em um país de forte traço cultural negro.

O Teatro Experimental do Negro não se limitava ao campo artístico, suas ações incluíam ações de conscientização e também de alfabetização do elenco recrutado, entre os quais: operários, empregadas domésticas, favelados sem profissão definida, estivadores e trabalhadores pobres. Experiências político-culturais que integravam arte, cultura e promoção cidadã, que representou uma forma revolucionária de denunciar o racismo no país.

Há ainda muito que falar do Grande Mestre e mais uma vez intimamente relacionado à política, pelo exílio imposto pela ditadura militar instaurada em 1964, que o faz permanecer treze anos fora do Brasil. Intensificou a produção como artista plástico, em que se dedicou à pintura relacionada à cultura religiosa afro-brasileira e a atuação como conferencista e professor universitário, voz potente na denúncia contra a discriminação racial, nos anos 1970. Período em que foi professor na Universidade do Estado de Nova Iorque, onde fundou a cadeira de Cultura Africana no Novo Mundo, e como professor visitante nas Universidades de Yale e no departamento de línguas e literaturas da Universidade de Ifé, na Nigéria. Tornou-se, a partir daquele momento, presença constante em congressos e fóruns de debates anti-racistas nos Estados Unidos, na África e no Caribe, como o primeiro pan-africanista brasileiro.

No retorno ao Brasil, optou pela carreira política partidária, exercendo mandatos de deputado federal e senador da república pelo PDT, e os cargos de secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras e de Cidadania e Direitos Humanos, ambos no governo do Estado do Rio e Janeiro. Sempre afirmando a importância da cultura negra na sociedade.

A longa e intensa vida do Mestre Abdias do Nascimento foi sem duvida a trajetória de um grande homem da cultura, um líder guerreiro da luta pela afirmação dos direitos dos descendentes de africanos no Brasil e em todo o mundo. Mais uma vez, me utilizo das palavras de Nei Lopes:

Quando um guerreiro parte (Abdias Nascimento)
Quando parte um guerreiro
O que se há de fazer senão cantar-lhe
Os cânticos de guerra que entoava?

O que se há de fazer
Senão soar os tambores que soava
Chacoalhando-lhes as soalhas
Aos ouvidos moucos da pequenez
E da indiferença
Para que todos saibam
Que um Herói ali vai ?!

O que se há de fazer
Senão imaginá-lo
Transpondo
Os limites da existência palpável
Para, novinho em folha,
Começar tudo de novo
Do outro lado do Tempo?
ADEUS, QUERIDO MESTRE!!!


Fontes:
- www.abdias.com.br, acesso em 26/05/2011
- http://www.neilopes.blogger.com.br/, acesso em 30/05/2011
- SEMOG, Ele. Abdias Nascimento - O Griot e as Muralhas. Editora Pallas, 2006.
- ALMADA, Sandra de Souza. Abdias Nascimento. Coleção: Retratos do Brasil Negro. Selo Negro. Editora: Summus. 2009.

Roberta Martins é produtora cultural

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