por Adair Rocha
O aprofundamento democrático e cidadão clama por política pública, que só o é, na vitalidade potencial da sociedade. Neste sentido, as políticas governamentais estão especialmente desafiadas, pela singularidade das demandas das políticas de Segurança, e a consequente exigência de se consolidar com política pública eficaz.
Por isso, a questão cultural e de natureza política mais atual, no Rio, responde pela pergunta: é possível uma nova cultura de segurança? Senão vejamos: a nova significação para os moradores da cidade-capital tem o nome de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Com início no Santa Marta há quase três anos, passa por favelas menores da zona sul do Rio, inicialmente, ampliando-se para conjuntos de favelas do Catumbi, da Tijuca, até chegar ultimamente a favelas significadoras para a definição do espaço urbano do Rio, de forma identitária, como a Mangueira e as vizinhas Rocinha e Vidigal.
A unanimidade da aprovação por parte de todos os moradores (do asfalto e da favela) em torno dos pressupostos da entrada da UPP: retomada do território e o desarmamento do tráfico, abre espaços, no entanto, para o debate sobre a natureza da coisa pública, bem como o entendimento das esferas do poder e do seu alcance.
Assim, quando se chega à Rocinha, por exemplo, mídias, governo e mercado tendem a tratar a história daqueles mais de cem mil moradores na lógica da "terra arrasada", ou, no máximo, dos herdeiros ou reféns do "Nem" ou dos gestores paralelos.
Estupefatos, alguns moradores de favelas "pacificadas" da zona sul do Rio, que fazem um curso de Cinema de um ano e meio de duração, em parceria com o Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio, comentavam sobre uma fotografia que apareceu na imprensa, escarnecendo a história dos moradores, na medida em que mostrava um jipão do Exército, à moda turística, transportando a diretora do Teatro Municipal, a atriz Carla Camurati, acompanhada de uma vistosa senhora, com ares de antropóloga, creditada pelo jornal, como sendo a esposa do Secretário de Segurança. Vistoriavam a favela para encontrar a melhor locação pra uma apresentação do Balé e da Orquestra do Municipal. E para que não se reduza os papéis e as competências, as pessoas citadas são absolutamente reconhecidas no exercício de suas funções. O Secretário citado é uma das autoridades do poder público e governamental mais reconhecida, hoje, pelo corajoso e não menos competente desempenho da tarefa governamental espinhosa e desafiadora da Segurança.
No entanto, a construção da política pública implica, necessariamente, no protagonismo da sociedade, que vai dialogar com gestores públicos governamentais, com papéis bem definidos (e neste caso, ser esposa, não é suficiente), para o acesso, em igualdade de condições, com todos os moradores da cidade, aos bens públicos a que têm direito, respeitando-se a história e as diferenças de cada processo.
Pode-se dizer que atrás dessa boa intenção de levar "civilização" para a favela que se "livra", não totalmente do chamado "poder paralelo", - aquele que está na polícia, com seu lado miliciano - mas sim do "poder econômico", cujos gerentes e comerciantes estão com "liberdade vigiada", quando tem que cessar seu poder de armas de fogo, na medida da retomada, pelo Estado-governo, do controle do território urbano do não-lugar da cidade que é a favela. A cultura precisa superar a lógica das duas cidades e construir sua integração e cerzimento. Pois, enquanto houver a demanda do consumo que a cidade realiza, ainda que proibido, a favela ainda continuará sendo o território da desova superfaturada da venda de drogas.
Antes de qualquer ação, pós-retomada, a pergunta central do poder público tem que estar voltada para a história de organização, de criação e resistência de tantas décadas pelos moradores, identificados pela diversidade, que dão vida pra Rocinha e selo pro Rio, com seus "varais de lembranças", livros infantis, pontos de cultura, folias de reis, Oliveiras, Marias Helenas, os Martins e os Firminos e tantas outras lideranças construídas, nas ASPAS, nas Associações de Moradores, nas Quadras do samba, do funk e da comunicação comunitária. Há o Fórum de Cultura e de Empreendimento e tantas empresas públicas e mistas que fizeram a Rocinha acontecer até hoje. Há ainda a iniciativa, com raízes, para se criar o Museu da Rocinha, para o desengarrafamento do transporte de memórias, quando a relação de troca de saberes e de sabores, se livrará de gestores culturais de atos simbólicos e midiáticos que queiram levar a cidade dita civilizada para a favela.
A política pública de cultura já deu passos muito significativos nos dois mandatos do governo Lula, quando partiu do pressuposto de que quem faz cultura, que é fruto da criação da memória e do conhecimento, é a população, na sua significação, e não o Estado, ou o governo, cujo papel é o de prover e de gerir a possibilidade da existência e da circulação daquilo que a sociedade cria e faz. Por isso sua participação e protagonismo na elaboração das políticas públicas são decisivos. Assim nascem os Pontos de Cultura (Cultura Viva) e a vitalidade e potência em rede ou teia, de mais de quatro mil pontos pelo país, com um passo adiante, que transforma em política pública e governamental, concepções de práticas que revolucionaram a forma de fazer política social e partidária, como as "Comissões de Fábrica", as "Comunidades Eclesiais de Base", os "Núcleos Partidários" (de base), Associações de Moradores, de Etnias, de Gênero, etc.
É a pressão e a participação dos que fazem cultura que apontam para a necessidade de regulação e de projeção da gestão territorial, que vai pra além do edital, já uma forma democrática de acesso, mas ainda insuficiente. Assim, na construção de Conferências municipais, estaduais e nacional, Sistema e Plano Nacional são geridos e apontam para mudanças em leis de regulações ultrapassadas e ou elitistas, como por exemplo, a Lei Rouanet e a nova Lei dos Direitos Autorais (esta última, com 85% do seu texto, segundo a mídia, aproveitado pela gestão atual). Da mesma forma, o Vale Cultura e outras políticas governamentais que vão criar o escoamento e o direcionamento das verbas públicas, nos canais municipais, estaduais e da União, para os protagonistas reais: a sociedade.
Diante desta avalanche de possibilidades, como potencializar as tradições, as instalações contemporâneas e o clamor jovem da imensa população empobrecida, com maioria negra, na cidade do Rio de Janeiro. Assim, podemos falar de transversalidade da cultura com a educação, com os direitos humanos, com a segurança e com a significação de todo o tecido público urbano.
Se me permitem citar dois exemplos, dos quais participo no momento, e que dão o tom do envolvimento de diferentes instituições na consolidação de uma política pública que acene cada vez mais na direção da universalização, que permita pensar a cidade-capital do Rio, na sua diversidade, independentemente das atividades internacionais em curso, e, ao mesmo tempo podendo considerá-las.
O primeiro desses exemplos é uma pesquisa com moradores da primeira favela "pacificada", o Santa Marta, com estudantes de comunicação social e com dirigentes das UPP’s, para entender seu significado para a cidade, a partir da favela em que está instalada, para desenvolver o entendimento da seguinte questão: é possível uma outra cultura de Segurança? Este estudo é parte do eixo Cultura, Cidade e Cidadania que está sendo desenvolvido para a conclusão do pós-doutoramento em Comunicação Social, na ECO-UFRJ, sob a orientação do Professor Emérito Márcio Tavares D'Amaral.
Um segundo exemplo é o projeto que está sendo desenvolvido pelo Núcleo de Comunicação Comunitária da PUC-Rio com moradores de algumas favelas "pacificadas" como o Santa Marta, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, Chapéu Mangueira e Babilônia. Os moradores que fariam o curso juntamente com o Núcleo produziram a grade de um Curso de Cinema com duração de um ano e meio, reconhecido como Extensão da PUC-Rio, com acesso aos professores, aos equipamentos e ainda com aulas práticas e produções audiovisuais nas favelas envolvidas. Com práticas como os Cineclubes e outras experiências do Cinema e do Audiovisual, pretende-se o estabelecimento de políticas públicas, isto é, aquelas que as necessidades da territorialidade urbana apontam como prioridades e, portanto, com parceria na sua criação e gestão, e não apenas políticas governamentais que, com as melhores intenções, vêm de fora, e chegam de teleféricos midiáticos.
Todo território urbano, revolucionado por sua criação e pela capacidade de perpetuação das diferentes linguagens desenvolvidas na história da humanidade: na sua expressão cênica, musical, plástica, ritual, audiovisual, dentre outras, é protagonista, tanto na elaboração das políticas públicas de cultura locais, como no acesso dos equipamentos que facilitarão a criação e a distribuição, bem como a troca das grandes potencialidades que são a diversidade, a generosidade e o 'calor' que o Rio reserva e conserva com grandezas urbana, natural e humana.