O
golpe produz momentos de ironia involuntária e, pela própria natureza morosa da
concepção, o cinema brasileiro tem sido um observatório privilegiado desse
fenômeno. Filmes que foram concebidos durante o governo de Dilma Rousseff e/ou
ao longo da era petista e, portanto, poderiam ser obras de situação, agora se
veem obrigados a nascer na resistência, sob a égide do Brasil golpista de 2017.
É
o caso de Pitanga, um documentário sobre o ator baiano Antônio Pitanga,
dirigido pela filha dele, a também atriz (carioca) Camila Pitanga, em duo com o
cineasta paulista Beto Brant (de Os Matadores, O Invasor e Cão sem Dono, entre
outros).
Pitanga
não é apenas pioneiro do empoderamento negro brasileiro, pela infinidade de
filmes de que participou desde o fim dos anos 1950 (e em especial no movimento
sessentista do cinema novo). Foi vereador carioca por dois mandatos pelo
Partido dos Trabalhadores e é marido da ex-governadora fluminense Benedita da
Silva, também petista.
Entre
2002 e 2003, foi “primeiro-damo” (como gosta de dizer) negro de uma governadora
mulher, negra e ex-favelada. No contrapé, Pitanga, o documentário, leva a
assinatura parceira da Globo Filmes e do canal noticioso GloboNews, o mesmo
aparato midiático que teve papel nuclear na derrubada de Dilma.
Tal
como o homem que é ligado ao candomblé e está casado com uma mulher evangélica,
ele tem sido um hábil malabarista a se equilibrar entre a esquerda progressista
e a direita reacionária, o racismo branco e a resiliência negra, a Rede Globo
onde a filha trabalha e o PT em que a esposa milita.
Camila, Pitanga, Benedita e Antônia, filha de Camila
O
artista negro explica a habilidade em circular desde sempre em meio a um status
quo flagrantemente hostil a tudo que ele significa e representa: “Eu não posso
deixar de usar uma tribuna, sem deixar de ser eu, Antônio Pitanga, para fazer a
minha fala, levar meu filme, meu discurso, meu pensamento. Qual é o espaço que
eu tenho? Eu tenho esse espaço, que se associa com o projeto, tem uma admiração
pelo projeto. Eles estão me dando essa chance, eu tenho de usar essa tribuna”.
Ainda
que Pitanga (e, por contiguidade, todo o PT e o campo progressista que
compuseram e compõem com o status quo global) se mova pelas tribunas inimigas,
ele não economiza palavras ao interpretar o golpe de 2016.
“Nasci
em 1939. Vi sair Dutra, chegar Vargas, suicídio de Vargas, Café Filho, Jânio,
golpe, Jango, golpe. Com 77 anos achei que isso não fosse mais acontecer.
Estamos vivendo um golpe mais trágico, porque esse não tem armamento. São os
caras travestidos de civis, mas muito bem organizados. Todos os poderes estão
conectados, sejam o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal, sejam os
meios de comunicação. Estão todos conectados. Mas a gente não deve deixar de
fazer, a minha profissão é essa. A minha maneira de pegar uma AR-15 é fazer
filmes, teatro.”
No
fio da navalha de ser protagonista de novelas da Globo, Camila reafirma o
sangue do pai ao enfrentar o mesmo tema. “Foi no meio da caminhada do processo
de montagem do filme que este país de hoje eclodiu no golpe, nestes desmandos”
, diz a atriz.
“A
cada dia somos alvejados por milhões de notícias que fazem a gente voltar no
tempo, com o desmonte dos direitos dos trabalhadores, um cenário horrível. Eu
jamais imaginaria que a gente estaria mostrando o filme neste cenário, mas, uma
vez que ele dialoga com este momento, acho que vem como um respiro
fundamental.”
O
pai se orgulha de ter pressionado o autor de novelas globais Silvio de Abreu a
incluir na trama de A Próxima Vítima (1995) um núcleo negro, de “família
normal”, no qual ele interpretava o pai e Camila era um dos filhos. “Falo
sempre que sou um capoeirista mental. Quero trabalhar com o intelecto dos
contragolpes. Não dei um golpe, quem deu golpe são eles. Aliás, um golpe em
todos os sentidos.”
A
filha responde se é possível a combinação intrincada de lutar contra o golpe,
ser funcionária da Globo e produzir, com apoio e divulgação da mesma
corporação, um documentário que tem DNA antigolpe. “Não posso falar pela
empresa. Eu falo por mim, pelas minhas ideias e ações. Exerço a minha
liberdade, e sou respeitada lá na empresa, até mesmo por isso. Nunca deixei de
falar as coisas que eu penso por nada, nem por ninguém. Eu penso o que penso e
me coloco de acordo com o que eu sinto, sem nenhum cerceamento.”
Tampouco
o codiretor Beto Brant usa tons de cinza para abordar o substrato político no
parto de Pitanga. “O PT é um partido que ficou muito tempo no poder, e muita
gente fisiologicamente pulou para dentro. Não nego que foi uma bandalheira, mas
o pior de tudo é que os caras mais corruptos estão lá e inclusive deram esse
golpe de Estado e estão fazendo o desmonte de várias conquistas sociais que o
PT promoveu, como na questão trabalhista, na previdenciária, na educacional.
Acho importante neste momento temerário, de intolerância, em que as pessoas
começaram a falar merda na rua e ser aplaudidas”, diz.
Brant, Camila e Pitanga
Na
situação ou na oposição, o documentário é por natureza uma obra de resistência,
na opinião do diretor: “Não é um filme de ressentimento, de rancor, de mágoa. O
Pitanga mostra seu valor por aquilo que ele afirma”.
O
desassombro com que Brant e os Pitanga comentam a tragédia brasileira de 2017
leva a refletir sobre o silêncio dos artistas em relação ao golpe. Eles estão
mesmo calados e medrosos, ou não se posicionam, por que os jornalistas não
perguntam?
O
cineasta afirma que, não, nenhum jornalista lhe perguntou antes se estamos ou
não sob golpe de Estado. O documentário é uma passarela pela qual desfilam, ao
lado de Pitanga, nove entre dez personalidades cruciais da geração do ator. O
amigo e correligionário Luiz Inácio Lula da Silva não comparece.
por Pedro Alexandre Sanches
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