Uma investigação da história de
centenas de indígenas mortos durante a ditadura militar no Brasil, de 1964 a
1985, foi transformada em livro pelo jornalista Rubens Valente, que durante um
ano entrevistou 80 pessoas, entre índios, sertanistas, missionários e
indigenistas para construir o relato.
Lançado na última semana na
capital paulista, o livro Os fuzis e as flechas – A história de sangue e
resistência indígenas na ditadura traz à tona registros inéditos de erros e
omissões que levaram a tragédias sanitárias durante a construção de grandes obras
do período militar, como a Rodovia Transamazônica.
“Em 1991, 1992, eu estive em uma
área de uma etnia que se chamava Ofaié-Xavante. E lá eles me contaram que
tinham sido transferidos pelos militares em um caminhão e haviam sido
despejados lá no Pantanal, a 600 quilômetros dali [de seu território original].
Lembro que essa história me marcou muito, porque mostrou que havia uma coisa a
ser contada nessa relação de índios com a ditadura, como eles sofreram impactos
nesse período”, contou o jornalista. Em viagens a outras aldeias desde os anos
1980, Valente conta ter ouvido relatos semelhantes.
“Em 1982, minha família mudou
para Dourados, em Mato Grosso do Sul. Eu sou do Paraná. E lá em Dourados existe
a maior aldeia indígena urbana, que vive naquela região. Então foi o primeiro
contato que eu tive com os indígenas no país, quando eu tinha 12 anos, no final
da ditadura. E a partir de então eu comecei a pesquisar o tema”, contou. O
jornalista começou a colecionar notícias, histórias, livros e estudos sobre o assunto.
Indígenas isolados
Segundo Valente, houve vários
métodos de controle e de enfrentamento dos militares em relação aos índios. Na
Região Amazônica, estavam as comunidades mais isoladas, que não tinham sido
contatadas e, na época, eram chamadas de hostis ou arredias.
“O regime militar desencadeia um
processo de ocupação da Amazônia, um processo que envolvia obras, como estradas
– principalmente a Transamazônica –, envolvia hidrelétricas e envolvia a
criação de núcleos de colonos, de trabalhadores rurais. Esses colonos que
vinham a reboque desses projetos de desenvolvimento”, disse. Tudo isso, segundo
o autor, “da noite para o dia”, sem um plano organizado com grande estrutura
sanitária e médica para os povos tradicionais da região.
“Foi um plano executado assim às
pressas, conforme o relato dos próprios sobreviventes, e que encontravam essas
populações desassistidas e despreparadas em relação aos vírus que os brancos
vinham trazendo. Isso que causou inúmeras mortes, centenas de mortos. E, aliado
a isso, começou a haver o que eu chamo de deportações dentro do próprio do
país. Eram grupos inteiros tirados de um lugar e colocados em outro.”
Valente contou a história de um
grupo Xavante retirado da fazenda Suiá-missú e levado para uma outra área da
mesma etnia, chamada São Marcos. “O cálculo é que morreram de 100 a 120 índios
apenas nessa operação. A força aérea transportou esse índios de uma área para
outra área de avião e lá eles morreram porque não havia um plano de atendimento
a essa população que havia chegado recentemente ali. Eu pude entrevistar
sobreviventes que enterraram esses corpos e fizeram covas coletivas, corpos que
foram enterrados com tratores, porque eram tantos corpos. É um típico caso de
um erro de entendimento da questão indígena”, disse. Segundo o autor, histórias
de deslocamentos como essa se repetiram várias vezes.
Construção da BR-174
Um dos casos considerados mais
graves por Valente está relacionado à construção da rodovia BR-174, conhecida
como Manaus–Boa Vista, que atravessou o território indígena da etnia
Waimiri-Atroari e colocou os índios em contato com trabalhadores, na década de
1970. “O cálculo mais modesto indica 240 mortos só nesse caso. A mortandade
ocorreu de 1974 até por volta de 1977”, disse. “Eu procurei amarrar esses
episódios e mostrar para o leitor um panorama do que ocorreu e a ideia de que
havia uma lógica por trás de tudo isso, uma lógica militar de ocupação da
Amazônia.”
Reparação
Para o autor, a principal
conclusão de sua pesquisa é a dificuldade do Estado brasileiro em reconhecer
essas mortes e de pedir desculpas pelo que ocorreu. “Em 2014, a Comissão
Nacional da Verdade aprovou um capítulo destinado aos povos indígenas, e esse
capítulo indicava a necessidade de um pedido de desculpas por parte do governo
brasileiro. Um pedido de desculpas pelo que aconteceu com os índios. E até o
momento, já se vão três anos, não houve sequer o reconhecimento, sequer um
pedido desculpas, quanto mais alguma forma de reparação desses danos.”
Fonte: Agência Brasil -17/04/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário